23 de ago. de 2007

AMENORRÉIA MENTAL. (por 7D)

“Afundar-se no nada abre um esquecimento aprazível,
mas estar consciente de sua existência e, no entanto,
saber que não se é mais um ser definido distinto de outros seres,
eis o auge indizível do pavor e da agonia.”
H.P. LOVECRAFT



Amenorréia mental. Como sangue que não desce estava grávido de memórias, ainda estavam por nascer. Sentia-se estranho, um bicho. Mais tarde se a memória voltasse sentir-se-ia ornitorrinco...

Mas por que ornitorrinco, ser estranho, transmutante tão irônico?!

Foi o tempo de um piscar de olhos, não o tempo disto que chamamos, ditado popular, num-piscar-de-olhos. Foi o tempo mesmo da pálpebra superior, lustrando o olho, se chocar com a inferior e reabrir-se numa estúpida explosão surda. Foi este gesto, pestanejar (parpadear chamariam em outras terras), nada mais que este gesto que borrou todo o resquício de memória.

O que vinha a ser qualquer coisa quando a pálpebra reabriu?!

Cores e formas e sons e cheiros e tatos e era como se tudo fosse pela primeira vez, mas já em media res. Tudo a sua volta sabia o que se era... ele não. Era como estar no meio de um vento cego. Todos os sentidos captam tudo, mas nada tem significado nenhum. O vento tocava o rosto e as sensações se espalhavam pelo corpo, ar quente, ar frio, sons. O som cortante das partículas passando rapidamente ao lado do ouvido, o som dos pés batendo no chão e outras estranhas máquinas não orgânicas que tremiam o entorno fazendo o coração vacilar, quase esquecido que estava que tinha que bater. Eram cores explodindo em formas que se confundiam entre si e um farfalhar de papéis que se chocavam uns nos outros e se dispersavam por aí. Olhava para tudo e algo voltava como um espelho que vai desembaçando. Sabia que todo o algo que olhava já era alguma coisa e isso, naquele momento, era uma espécie de conforto. Poderia ter experimentado sensação ainda mais primitiva, a sensação de poder nomear todas as coisas pela primeira vez.

Sem memória se é um Deus...

Poderia ter pensado isso se lembrasse o que era memória ou Deus ou mesmo qualquer palavra. Poderia ter renomeado cada tudo e qualquer coisa, mas estava esquecido. Apático, catatônico, estático ficou. Não ter memória alguma é tão paralisante quanto ter cada segundo de vida guardado na cabeça. A primeira coisa que começou a tomar alguma forma reconhecível foi seu próprio corpo. Um momento de tomada de consciência, como um bebê que se vê no espelho no colo da mãe e percebe que é outro ser, destacado do corpo que o gerou. Para além de possível angústia reconheceu outros sentimentos. No lugar de uma possível tensão terrível que pensou dever estar sentindo se aconchegou no calor da inconsciência tranqüila. E neste reorganizar da memória sem mover-se sentiu aquele tudo que o embalava. Ele ali estátua viva esquecida embalado no caldo sangue de uma história perdida:

Gosto ferrugem lâmina de faca e penugens brancas com espasmos. Queimado cheiro forte sintético verniz. Textura álcool líquido ardente garganta fervendo no salgado tom que brota da pele castigada pela dureza do calor pedra expelindo todo o gás profano de uma rua dobrada esquina bêbada encruzilhada de ritual ácido ainda no fervilhar do medo do desconhecido.

E assim, rosnando essas sensações com a camisa manchada de sangue de uma faca que pingava o pescoço cortado de uma galinha, tropeçou no ruído de uma garrafa de vidro apoiada em velas gastas e foi despertando. Como um braço dormente que acorda, formigueiro, de uma noite de esmagamento, a memória foi voltando e uma bicicleta e um alucinado o despertaram para a verdade do que estava fazendo ali.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que lindo saberte escribiendo! Un beso.