16 de ago. de 2007

O CICLISTA UNIFORMIZADO (POR 7M)

Nove e meia da manhã, quase exatamente, é o horário em que o sol bate numa mesma e branda intensidade em toda a parte. É primavera, a segunda metade dela, quando todas as flores já foram abertas, misturadas no verde que cresce ao longo das estradas e das vielas dali. Vem a bicicleta e o barulho dos pneus da bicicleta que oscila ora no asfalto, ora na terra. Na paisagem que se estende na visão do ciclista não existem muitas árvores por perto. Os carros passam estacionados. São nove e meia da manhã no hemisfério norte, perto do oceano Pacífico. O silêncio é a bicicleta. A bicicleta respira solitária. Pois nesse horário as paixões ainda estão guardadas sob os telhados espalhados por ali. Um caminhão ao longe faz barulho. E sopra uma brisa fria de montanha com o cheiro do mar. Não é o Atlântico. O ciclista está uniformizado, mas isso não o incomoda. O calor está nos pés. Mais adiante, uma curva mais aberta se desdobra num acostamento. A direita do acostamento, uma paisagem ainda mais extensa. Ao parar ali, o ciclista é tomado por um vento mais forte. O vento ocupa o silêncio agora que a bicicleta parou. A extensão da paisagem não interessa muito ao ciclista, nem a ninguém. Não que ela não seja suficientemente sublime para não ser notada. Ela é bela talvez. Para o ciclista, e para todos, ela não importa mais do que pedalar, mais do que as vielas escolhidas para o seu caminho, ou mais do que a força do vento, ou o calor repentino que se instala debaixo do seu corretíssimo uniforme. A vista é um mesmo despropósito. O vento entra pelas frestas e resfria confortavelmente o corpo do ciclista. Nove e quarenta e cinco. Ele está ali parado, um pouco além do esperado. Não olha a vista, olha as mãos apoiadas na bicicleta e pensa silenciosamente em tudo. O silêncio agora é pensamento. O pensamento dele ocupa não só o silêncio, mas aquela vista por inteira, como uma nuvem sobre aquele vale. “É uma vista para um vale”, pensa ele surpreso. Não consegue esboçar uma visão do vale, pensa muito. Quase dez horas e as paixões ainda permanecem debaixo dos telhados. Não quer pedalar pois não existem paixões. Uma hora mais tarde e não seria diferente. Chegaria a hora de comer e comeria só a comida, na quietude dos maxilares, e ainda livre das paixões. É de manhã, ali no hemisfério norte, próximo ao Pacífico. Do caminho do ciclista não se vê o mar. Nas paredes do vale, logo no fim da camada de asfalto, flores jazem adormecidas descoladas do caule, sem mais conexões com as raízes. Cerejeiras ou azaléias. Ele coloca os pés de volta nos pedais. Precisa de mais um fôlego, perdeu-os todos ali naquele acostamento. Não os pode arranjar. Não sente mais vontade nem de ir nem de retornar. Quer ficar ali, gostaria que sua bicicleta fosse movida não mais por ele. Nem por ninguém. Também não acreditava em vôos ou em telecinese. Não acreditava nessas coisas. As paixões deveriam sair de seus esconderijos e sentir o sol morno da primavera e ele finalmente se moveria. Mas não quer. Acha que pode ficar ali, confortavelmente, para o resto da eternidade. Mas precisa comer. O estômago vazio e esta falta de medo de pôr tudo a perder fazem com que finalmente ele siga adiante no caminho pretendido. E lá, em algum lugar do caminho, teria alguma coisa para comer. A paisagem extensa fica para trás e some para sempre. A bicicleta volta a ser o alimento do silêncio. Aos poucos o ciclista uniformizado retorna ao seu estado natural, pedalando como se nunca tivesse parado por qualquer motivo.

2 comentários:

Anônimo disse...

O silêncio é a bicicleta. Mariano não sabia que você possuía o dom de escrever contos......alías você os escreve muito bem......
7A.

Alice Sant'Anna disse...

que lindo! me lembrou do filme que a gente viu. bem oriental, tranqüilo, te amo.